Zero Lactose: Os impactos da hidrólise no leite.

Os produtos Zero lactose invadiram as prateleiras dos mercados nesta última década. Assim como qualquer novidade, essa também veio acompanhada de uma enxurrada de informações, algumas delas desencontradas. Nesta série de artigos nós vamos colocar os pingos nos “is” e tirar as principais dúvidas em relação aos produtos Zero Lactose.

Este é o terceiro artigo da série! Vou abordar aqui os impactos da hidrólise na produção do leite pasteurizado e do leite UHT.

Boa leitura!

Zero Lactose - Leite C e UHT
Representação gráfica para leites Zero lactose.

Hora de colocar a enzima no leite!

Nos primeiros artigos desta série, falei sobre o que são produtos Zero Lactose e também sobre a principal etapa na fabricação destes produtos, que é a hidrólise (Se você ainda não leu, dê uma conferida, pois eles são a base para que falarei a seguir).

Como deu pra perceber, tornar um produto Zero lactose é mais do que adicionar uma enzima no leite. Requer um pouco de conhecimento da reação de hidrólise, assim como do processo de fabricação do produto lácteo em específico.

O leite é um alimento completo com o qual é possível fabricar diversos tipos de produtos, cada um empregando uma tecnologia diferente. É devido a essas diferenças que não podemos considerar uma mesma de hidrólise para todos.

Em alguns casos, até mesmo é necessário uma enzima especial.

Hoje existem uma série de enzimas no mercado adequadas aos mais diversos processos. Vamos passear pelas principais tecnologias de fabricação dentre os derivados lácteos, apontando as particularidades em cada processo.

Leite tipo C.

O leite C, ou simplesmente leite pasteurizado é um dos produtos mais simples fabricados a partir do leite. A principal etapa de processamento é a pasteurização, seguida do envase, geralmente em pacotes “barriga mole”.

Embora este seja um produto simples de produzir, não podemos dizer o mesmo para sua hidrólise. E isso se deve à suas características. Repare que estou me referindo ao produto “Leite C”, e não à matéria prima “Leite”.

Quando o leite chega ao laticínios, ainda cru, realizar uma hidrólise à frio significa manter este leite mais um dia sem ser pasteurizado. Pensando em uma realidade onde o leite já tem um dia depois de ordenhado, é bem difícil garantir sua qualidade.

Uma hidrólise a quente no leite cru então, nem pensar. Sem dúvida é mais rápido, mas também acelera a deterioração.

Adicionar a enzima no leite após a pasteurização também é complicado, mesmo a frio. Isto porque o leite C já é um produto de validade curta, em média 7 a 10 dias. Mantê-lo mais um dia na fábrica é um dia a menos para vendê-lo.

E a quente também vamos diminuir sua validade pela atuação das bactérias..

Não atoa vemos poucas marcas comercializando este produto na versão zero lactose. E quando encontramos, são de indústrias “Tipo A” ou feitos a partir de leites selecionados, com logística facilitada antes e depois do processamento, para evitar a perda de qualidade.

Leite UHT

Agora vamos falar do irmão mais novo e mais badalado do leite C: O leite UHT. Este produto ganhou muito mercado no Brasil, principalmente pela sua validade estendida.

Na fabricação, antes de passar pelo processo UHT, o leite é pasteurizado. Nesta janela entre a pasteurização e a esterilização é possível realizar a hidrólise à frio, aquela com duração entre 20 e 30 horas.

A extensão no tempo de processamento neste caso não vai impactar na comercialização do produto. Em outras palavras, um dia a mais não vai fazer muita diferença para um produto com 4 meses de validade.

A hidrólise à quente antes da esterilização continua sendo inviável, pois mesmo um leite pasteurizado tem uma carga microbiana deteriorante. A provável elevação da acidez e perda de estabilidade no leite durante a hidrólise pode levar à precipitação durante o tratamento UHT.

Porém, devido às particularidades do processo, no “leite da caixinha” é possível realizar a hidrólise após a esterilização.

Isso mesmo! O processo UHT elimina praticamente todas de bactérias do leite, sendo possível hidrolisar tanto a quente quanto a frio após o tratamento térmico. E como este produto tem um prazo de validade considerável, o tempo adicional da hidrólise não é um problema.

Mas tem uma falha aí. Por ser um leite já esterilizado, a adição da enzima é um foco de contaminação, portanto, nada feito.

“Mas e se a gente conseguir esterilizar a enzima e colocá-la de maneira asséptica no leite?”

Bingo!

A maioria das inovações surgem de perguntas como estas. E felizmente, alguém já havia pensado em uma maneira de resolver o problema.

Hoje existem sistemas de dosagem assépticos, que são utilizados para dosagem de ingredientes após o processo UHT, logo antes do envase. Com isso o leite não perde sua esterilidade comercial. É claro que, para dar certo, a enzima também deve ser livre de contaminações.

A vantagem deste processo é que não é preciso aumentar a temperatura para o ótimo da enzima. Isso porque os leites UHT já ficam um período de 5 a 7 dias em quarentena na indústria aguardando liberação do laboratório.

Linhas de adição da enzima para Zero Lactose
Etapas do processamento UHT onde pode ser adicionada a enzima lactase.

Este tempo é mais que o suficiente para hidrólise total sem precisar gastar energia aquecendo e resfriando o leite.

Mas é só vantagem? Tecnicamente, sim, mas existe um ponto que pesa contra estes sistemas de dosagem: O custo. Não só do equipamento, como da enzima.

Não pode ser qualquer enzima, e com razão. Imagine perder toda uma produção de leite zero lactose por usar uma enzima sem as devidas garantias?

Entretanto, a praticidade e performance deste processo podem valer o investimento.

A questão sensorial

Outro aspecto importante aqui é o sensorial.

Em primeiro lugar, a lactose é um açúcar. Mas não tem um poder edulcorante tão forte, chegando a apenas 16% do açúcar comum (sacarose).

Um ponto curioso aqui é que a glicose e a galactose, quando separadas, tem uma capacidade de adoçar maior que a da própria lactose. Ou seja, quando juntas, as moléculas não somam a doçura.

A nível de valores, a glicose apresenta 74% de poder edulcorante, enquanto a galactose tem 32%.

Então, a primeira diferença notável entre um leite comum e o leite “zero” é a doçura. Em todos os derivados ocorre esta diferença, mas aqui, por ser leite puro, é mais fácil notar pois não existem outros ingredientes para compensar ou confundir nosso paladar.

A outra diferença sensorial está na cor.

A lactose é um açúcar redutor que participa da reação do escurecimento não-enzimático. A hidrólise potencializa esta reação, pois são liberados dois açúcares (Glicose e galactose) que também são redutores. Isso intensifica esta reação de escurecimento conhecida como reação de Maillard.

Desta forma, é possível notar um leve escurecimento do leite UHT zero lactose quando comparado ao leite UHT regular, principalmente quando a hidrólise é realizada antes da esterilização. Por outro lado, a hidrólise após o tratamento térmico minimiza este efeito.

Os efeitos deste escurecimento são mais visíveis no produtos concentrados, como o doce de leite ou leite condensado, onde a exposição ao calor é maior.

Mas estes produtos são assunto para o próximo artigo.

Aproveite e comente abaixo o que você está achando desta série. Está aprendendo coisas novas? Qual produto ou processo você gostaria de conhecer mais a fundo?

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Paulo Henrique Rodrigues Júnior
Paulo Henrique Rodrigues Júnior

Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos pela Universidade Federal de Viçosa. Atuo no setor de P&D e Processos na indústria desde 2015.
E desde então vivo um caso de amor pelos Processos Industriais. E quando sobra um tempinho, faço uns desenhos.

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