Zero Lactose: A tecnologia dos concentrados hidrolisados.

Os produtos Zero lactose invadiram as prateleiras dos mercados nesta última década. Assim como qualquer novidade, essa também veio acompanhada de uma enxurrada de informações, algumas delas desencontradas. Nesta série de artigos nós vamos colocar os pingos nos “is” e tirar as principais dúvidas em relação aos produtos Zero Lactose.

Este é o quarto artigo da série! Nele vou abordar as modificações necessárias no processo de fabricação de doce de leite e leite condensado Zero lactose.

Boa leitura!

Hidrólise nos concentrados
Qualquer semelhança com um certo doce de leite é mera coincidência.

O que são lácteos concentrados?

Os concentrados compreendem aqueles derivados do leite onde é realizada a remoção parcial de água por meio das tecnologias adequadas. Neste grupo estão inclusos o Doce de leite (Hummm!), Leite condensado, leite evaporado e outros similares.

A retirada de água nestes produtos leva a um aumento percentual dos demais constituintes, o que modifica as propriedades do leite. Se os processos e as propriedades mudam, será que a hidrólise da lactose terá os mesmos impactos no produto final?

Só por este artigo existir, você já sabe que não.

No artigo anterior, onde abordamos os leites pasteurizado e UHT, vimos que os impactos da hidrólise da lactose se limitam ao sensorial do produto. Existe um cuidado para não diminuir a qualidade do leite durante o processo, mas fora isso, ainda é leite.

Nos derivados concentrados a conversa muda um pouco. Vamos entender o porque.

Hidrólise = Lactose + água.

A lactase é importante para que a quebra da lactose ocorra e isso é fato. Porém vimos lá no segundo artigo da série que a enzima é um catalizador. A reação acontece mesmo entre a lactose e a água.

Estas duas moléculas são peça-chave. Por este motivo temos que prestar atenção em cada uma delas dentro do processo para avaliar a melhor etapa de hidrólise.

Nos lácteos concentrados, a principal etapa tecnológica é a remoção de água. Por consequência, temos a concentração dos demais compostos, incluindo a lactose.

Se antes a lactose já era o constituinte em maior quantidade, sua importância só aumenta quanto maior for a concentração. E isto impacta na atuação da enzima.

Dentre as modificações da lactose, a mais importante nos concentrados é a cristalização. A lactose é um açúcar com solubilidade relativamente baixa (Em torno de 18g/100g de água).

Quanto menor a quantidade de água, maior a tendência de formar cristais. Para se ter uma ideia, a umidade do leite in natura é de 87,5% contra menos de 30% no doce ou leite condensado.

Os efeitos desta cristalização já estão previstos e fazem parte das soluções tecnológicas na fabricação destes produtos.

Sabendo destas mudanças, em qual etapa é melhor adicionar a enzima? E mais, o que acontece quando “tiramos” a lactose destes produtos?

Para encontrar estas respostas, precisamos entender cada processo de fabricação.

O doce de leite Zero lactose.

O doce de leite é o produto obtido a partir da fervura de leite adicionado de açúcar e bicarbonato de sódio. Seu sabor e coloração característicos devem-se às reações de Maillard (lactose) e de caramelização (sacarose).

Existem variações com outras adições e versões saborizadas, mas como existem poucas diferenças no processo, vamos nos basear pelo tradicional.

As etapas de fabricação podem ser resumidas em:

  • Pasteurização do leite;
  • Redução da acidez do leite com Bicarbonato;
  • Adição do açúcar;
  • Evaporação em tacho aberto (> 100 °C);
  • Resfriamento e envase.

Já sabemos que não é muito interessante uma hidrólise à quente (30 a 40°C por até 4 horas). Ela poderia levar à perda de qualidade do leite e consequente precipitação durante a fervura. Como não queremos fazer ambrosia, não vale o risco.

O mais usual é uma hidrólise à frio (Menor que 10°C por 20 a 30 horas) após a pasteurização. E é importante que seja uma hidrólise no leite, antes da adição dos demais ingredientes.

O acompanhamento da % de lactose hidrolisada geralmente é realizado por meio da crioscopia. A sacarose interfere neste método, não sendo possível identificar quando a hidrólise foi concluída.

Além disso, não existe nenhuma vantagem em adicionar a enzima depois da sacarose. Pelo contrário, isso pode gerar um atraso da reação. A ação da lactase é específica para a lactose, porém quanto mais sólidos estiverem presentes no meio, mais lenta será a reação.

Neste sentido, não é possível realizar a adição da lactase após a processamento, como é no caso do leite UHT.

Primeiramente porque o envase do doce de leite é realizado em temperaturas acima dos 50°C, que pode inativar a enzima. Ao mesmo tempo o alto teor de sólidos e alta viscosidade impede a mobilidade da enzima dentro do doce, estagnando a reação.

A falta que a lactose (não) faz.

Lembra da cristalização da lactose?

O mecanismo da cristalização não é tão simples (Merece um artigo próprio, aliás), mas pode ser resumido como o agrupamento de moléculas de lactose, que saem da solução e passam para o estado sólido, ou cristal.

No doce de leite, esta cristalização pode ocorrer de forma desordenada, gerando o defeito da arenosidade, que é quando existem cristais de lactose grandes o suficiente para serem percebidos pela nossa língua. Eventualmente esses cristais podem ser vistos a olho nu.

Porém a cristalização da lactose só ocorre quando há muita lactose em solução, em condições de mobilidade para a formação do cristal.

Uma das maneiras que a indústria encontrou para prevenir este defeito é a adição de lactase para quebrar parte da lactose. Mas apenas uma hidrólise parcial, com o objetivo de diminuir a quantidade de lactose em solução o suficiente para inibir a cristalização. Estes doces não são caracterizados como Zero lactose.

Então o doce de leite Zero lactose propriamente dito se beneficia muito da hidrólise, pois inibe a cristalização. Mas isto só é possível porque glicose e galactose não cristalizam. Estes açucares são muito mais solúveis em água que a lactose.

Por outro lado, a reação de Maillard é potencializada pela presença dos monossacarídeos redutores. A versão Zero lactose do doce, se não houver nenhuma modificação de processo, será mais escura que a versão tradicional.

A hidrólise também aumenta o dulçor da mistura devido ao maior poder edulcorante dos açúcares separados.

Dessa forma, para manter o doce de leite sem grandes alterações sensoriais, podem ser necessárias modificações, como redução da quantidade de sacarose, ou evaporação parcial à vácuo para diminuir a cor.

Leite condensado Zero lactose.

O leite condensado é um produto muito semelhante ao doce de leite tradicional tanto em ingredientes quanto em processo. Exceto por:

  • O bicarbonato não é um ingrediente. Usa-se apenas leite e açúcar.
  • A evaporação é feita sob vácuo, a temperaturas médias de 60°C

Estes dois pontos atuam no mesmo sentido: Diminuir a reação de Maillard. Por isso, embora os dois produtos possuam composições semelhantes, tanto na mistura quanto no produto final, são totalmente distintos em relação ao sabor e à textura.

Do ponto de vista da hidrólise, a etapa é a mesma utilizada para o doce: à frio, no leite antes das adições.

A hidrólise também elimina o defeito da arenosidade no leite condensado, assim como no doce.

Mas existe um porém. A cristalização da lactose é uma etapa fundamental na fabricação do condensado. Ela ocorre de forma controlada, para formar cristais imperceptíveis ao nosso paladar.

Zero lactose Concentrados Hidrolisados Cristais de Lactose
Infográfico: Microscopia de leite condensado (400x)

Importante: o defeito da arenosidade ocorre apenas quando a cristalização não é controlada e forma cristais grandes. Os micro cristais são benéficos, e aumentam a viscosidade do produto, inclusive.

Então, o leite condensado Zero lactose tende a ser menos viscoso que o tradicional. Eu digo tendem, porque podem ser feitos ajustes no processo para compensar essa viscosidade, mas quando comparamos os dois produtos sem variação de processo, o Zero lactose será mais “ralo”.

Quanto aos demais parâmetros sensoriais, o produto será mais escuro e mais doce, assim como no caso do doce de Leite.

A saga continua!

Com isso, podemos perceber que cada constituinte do leite tem sua contribuição na fabricação dos derivados. Será que os impactos são ainda maiores em iogurtes e queijos? Algum processo já elimina naturalmente a lactose?

É o que veremos na próxima semana.

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Aproveite e comente aqui se você já sabia de todas estas particularidades. Te espero na próxima leitura.

Paulo Henrique Rodrigues Júnior
Paulo Henrique Rodrigues Júnior

Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos pela Universidade Federal de Viçosa. Atuo no setor de P&D e Processos na indústria desde 2015.
E desde então vivo um caso de amor pelos Processos Industriais. E quando sobra um tempinho, faço uns desenhos.

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