Zero Lactose: O açúcar do leite no multiverso dos alimentos.

Os produtos Zero lactose invadiram as prateleiras dos mercados nesta última década. Assim como qualquer novidade, essa também veio acompanhada de uma enxurrada de informações, algumas delas desencontradas. Nesta série de artigos nós vamos colocar os pingos nos “is” e tirar as principais dúvidas em relação aos produtos Zero Lactose.

Este é o último artigo da série, onde vamos abordar o papel da lactose nos alimentos em geral e por consequência, os impactos de usar ingredientes Zero lactose.

Boa leitura!

Zero Lactose: Alimentos
Representação gráfica para alimentos Zero lactose.

Leite é ingrediente.

Nos artigos anteriores eu trouxe as principais alterações que a hidrólise da lactose causa nos processos produtivos. Falamos muito “da porteira pra dentro”, ou seja, focando na indústria de lácteos. Afinal a lactose é um açúcar exclusivo do leite.

Mas o leite e seus derivados são alimentos tão versáteis que são utilizados em larga escala em outros segmentos, como ingredientes. As vezes, segmentos tão grandes quanto o próprio setor lácteo.

O leite em pó é um dos derivados mais importantes nesse aspecto.

Pães, bolos, sobremesas, molhos, sorvetes, chocolates. A regra é: Se dá para por leite, coloque o leite!

O que torna o leite um ingrediente tão requisitado por outras indústrias? Funcionalidade e sabor a um custo acessível!

O leite, principalmente na versão em pó, é uma fonte de proteínas e gordura de custo relativamente baixo e de ampla aceitação sensorial. As proteínas cumprem função de estabilizante, espessante, etc., enquanto a gordura dá sabor e cremosidade.

Não é fácil encontrar substitutos para estas funções. Espessantes e gomas tem custo acessível, mas para muitos, diminui a qualidade do produto. Aditivos não são bem aceitos pelo consumidor.

E os ingredientes mais naturais que possam cumprir a mesma função, ou são caros, ou deixam algum sabor residual indesejado.

E a lactose?

No primeiro artigo da série, comentei sobre a função biológica da lactose. E ao longo desses artigos, fomos vendo a importância tecnológica e como ela influência nas características dos produtos.

Contudo, podemos dizer que a lactose é basicamente um brinde que acompanha a proteína e a gordura, contribuindo mais para aumentar o teor de sólidos da mistura do que qualquer outra coisa.

Embora seja um açúcar, sua contribuição como edulcorante é bem baixa. Dificilmente a formulação de um produto doce terá a lactose como adoçante principal.

Já em outros produtos, principalmente forneáveis, ela pode ajudar no escurecimento não enzimático tornando o produto mais atrativo.

Pense naquele frango assado bem dourado de dar água na boca.

Isso é reação de Maillard, que pode ser intensificada na presença de lactose. Ainda assim, existem outros açúcares redutores que podem trazer o mesmo efeito em um custo mais baixo.

Portanto não é um motivo para usar lactose, é apenas uma consequência de ter trazido leite para a formulação.

Isso não quer dizer que a lactose seja um ponto negativo nas receitas. Mas sim, existem algumas vantagens em hidrolisar essa lactose. (Mas nenhuma delas nutricional, ok?). Vamos entender melhor com um exemplo de produto.

Benefícios da hidrólise no sorvete

O sorvete é um derivado lácteo ou um alimento que usa leite em usa composição? Existe diferença mesmo no que eu falei acima? Responda nos comentários.

Fato é que o sorvete é feito com leite.

Uma forma de fazer sorvete Zero lactose seria simplesmente tirar o leite da formulação, correto? Bem, não! Existe toda uma tecnologia de fabricação onde os constituintes do leite são fundamentais para a manutenção da estrutura do produto.

Além disso, a Portaria 379 (1999) define que sorvetes devem ser feitos a partir de leite. Um gelado comestível sem leite poderia ser chamado Sorbet, por exemplo, mas não sorvete.

Dito isso, o jeito é mesmo hidrolisar a lactose. E é uma excelente alternativa, por sinal.

O sorvete é uma emulsão de glóbulos de gordura, cristais de gelo e bolhas de ar em uma solução de açúcar. As proteínas do leite agem como estabilizantes para que a emulsão não se desestabilize, em conjunto com os emulsificantes.

Os açúcares (incluindo a lactose) atuam no controle da fusão do sorvete, prevenindo a formação de cristais de gelo indesejáveis e melhorando a textura do produto final.

Mas o uso da lactose é extremamente limitado, pois ela tem solubilidade muito baixa. Isso leva à cristalização da mesma, culminando no defeito da arenosidade no sorvete.

Por isso se usa a sacarose, para compensar estes sólidos e dar mais viscosidade à solução. Uma base para sorvete tem em torno de 20% de sacarose adicionada.

O leite zero lactose é benéfico em sorvetes pois elimina o defeito de arenosidade da lactose. E não para por ai. A quebra em glicose e galactose contribue com maior dulçor, além de atuar melhor no controle da textura do sorvete.

Com isso é possível inclusive reduzir o teor de sacarose adicionada sem prejuízos para a qualidade do produto.

As modificações no chocolate.

Embora a lactose soe como um intruso indesejado para a maioria dos produtos, existem também exemplos onde a lactose desempenha uma função, o que torna dificil sua substituição.

Nesse sentido, chocolates são um bom exemplo.

Para produzir chocolate não é obrigatório o uso de leite. Porém a versão mais consumida deste produto (Que eu tenho que admitir, sou fã) é a de Chocolate Ao leite.

Zero Lactose: Alimentos
Shut up and take my money!

O leite arredonda o sabor e ajuda a deixar a textura do produto mais macia. E além disso, eleva o valor nutricional do alimento.

A lactose aqui exerce um papel sensorial importante. No processamento de chocolate, existe uma etapa conhecida como Conchagem, onde a mistura de cacau, leite e açúcar fica agitando de forma constante a uma temperatura controlada, de até 70°C.

Esta etapa elimina sabores residuais do cacau e reduz a umidade do chocolate. Durante este tratamento, a lactose sofre reação de Maillard, o que dá ao chocolate ao leite cor e sabor característicos.

Galactose e glicose também participam do escurecimento não enzimático, certo? Sim, mas as alterações sensoriais serão mais pronunciadas no produto hidrolisado, o que leva a mudanças no perfil sensorial, sem contar o aumento do dulçor.

Nos chocolates brancos, por exemplo, será bem perceptível a alteração da cor.

A hidrólise também afeta o processo de produção do chocolate. Diferentes açúcares possuem propriedades distintas. Os estados (cristalino, amorfo), interações, viscosidade e etc. se alteram.

Os impactos vão desde as temperaturas do processamento até o perfil de derretimento do chocolate.

Outro fator que explica poucos chocolates na versão Zero lactose é o próprio leite em pó Zero lactose, que é escasso no mercado.

Como já existem chocolates sem leite (Ditos “amargos” ou “intensos”), também não há grande incentivo para fazer Zero lactose das versões ao leite.

Avalie o papel da lactose em seu produto.

E assim chegamos ao final da nossa série. Não daria para trazer todas as vantagens e desvantagens para cada grupo de produtos, pois ficaria um artigo muito extenso.

A maioria dos produtos terão benefícios com a hidrólise da lactose, principalmente nos casos onde existe uma concentração grande deste açúcar. Nestes produtos, conseguimos melhorar os defeitos provenientes da cristalização.

Mas, como vimos com o exemplo do chocolate, o uso de produtos zero lactose como ingrediente deve ser acompanhado de estudo, pois a lactose não é um material inerte que não participa dos processos dentro dos alimentos.

Isso vale para todo desenvolvimento!

Um último ponto.

Ao utilizar derivados zero lactose como ingrediente, consulte a procedência da enzima. A maioria dos processos não inativa a lactase, ou seja, esta enzima vai passar para o outro alimento.

Isso não é um problema por si só. A beta-galactosidade é específica para a lactose.

Porém o processo de fabricação das lactases pode trazer junto algumas enzimas contaminantes, como as invertases, que podem degradar a sacarose.

Sorvetes e chocolates são produtos onde a sacarose atua na textura e não apenas no sabor. Usar um leite que contenha invertases vai impactar na formulação e estrutura destes produtos: prejuízo tecnológico.

Então é sempre bom ter atenção. Consulte o SAC da empresa que te fornece o insumo para se certificar.

E se você fabrica leites zero lactose para uso em outras indústrias, use enzimas purificadas para não desandar o produto do seu cliente.

Agradeço a todos que acompanharam esta série. Seguiremos com as postagens semanais, com os temas variados. Conto com suas sugestões.

Quero te ouvir. Qual tema é relevante para você, no seu trabalho, estudos, ou só por curiosidade? O que você achou deste formato? Faltou algum produto zero lactose? Comente logo abaixo.

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Paulo Henrique Rodrigues Júnior
Paulo Henrique Rodrigues Júnior

Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos pela Universidade Federal de Viçosa. Atuo no setor de P&D e Processos na indústria desde 2015.
E desde então vivo um caso de amor pelos Processos Industriais. E quando sobra um tempinho, faço uns desenhos.

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