A proposta de rotulagem frontal (RDC 429/2020) promete trazer uma mudança nos hábitos alimentares dos brasileiros e por consequência, mudará também a maneira de desenvolver e produzir os alimentos. E um dos principais focos está no açúcar.
No meu ultimo artigo publicado no Milkpoint, eu discuti um pouco sobre estes impactos de maneira geral. Algumas adequações são mais fáceis de fazer enquanto outras vão exigir de nós, profissionais, quebrar um pouco a cabeça.
Embora as reduções nos teores de sódio e gorduras saturadas sejam bem desafiadoras, a redução de açúcares é a que mais preocupa os profissionais.
Isso é bem específico para o meu circulo, e talvez seja tendencioso (A maioria dos meus contatos está no ramo de laticínios).
Ainda assim, me dá o ponto de partida. Mas não se preocupe, já estão no forno os artigos para discutir o sódio e as gorduras saturadas.
Então vamos lá!
Açúcar ou carboidrato?
Geralmente nós usamos estas palavras como sinônimos, mas não é bem assim. Açúcares são carboidratos. só que nem todo carboidrato é um açúcar.
Os carboidratos são, quimicamente falando, poliidroxialdeídos ou poliidroxicetonas, compostos orgânicos feitos de carbono, hidrogênio e água (CH2O)n . Eles possuem função energética e/ou estrutural.
Os carboidratos são compostos de uma ou mais unidades fundamentais, chamadas glicídios ou sacarídeos (Cada unidade possui de 3 a 6 átomos de carbono). Podemos agrupar os carboidratos da seguinte forma:
- Monossacarídeos: Uma unidade fundamental. Ex. Glicose, Frutose, Galactose;
- Dissacarídeos: Duas unidades fundamentais. Ex. Lactose (1 Glicose + 1 Galactose), Sacarose (1 Glicose + 1 Frutose).
- Oligossacarídeos: De 2 a 10 unidades fundamentais. Ex. Oligofrutose (2 a 9 Frutoses + 1 Glicose).
- Polissacarídeos: Mais de 10 unidades fundamentais. Ex. Amido (> 10.000 glicoses), Celulose (> 10.000 glicoses).
Os açúcares têm a mesma definição química dos carboidratos, contudo se limitam aos mono e dissacarídeos solúveis em água. E essa é inclusive a definição encontrada na própria RDC 429.
“Açúcares são todos os mono ou dissacarídeos presentes no alimento que são digeridos, absorvidos e metabolizados pelo ser humano, excluindo os poliois.”
A função importa.
Existem vários tipos de carboidratos, no entanto porquê a legislação se preocupa apenas com os açúcares? Por causa de sua função no organismo. Dentro dos carboidratos temos desde moléculas simples e de fácil absorção como a glicose, até grandes cadeias não digeríveis, como é o caso da celulose.
Os açúcares são a fonte primária de energia das células. Seu consumo é benéfico e natural. O problema está no excesso.
O excesso de açúcares na corrente sanguínea indica para o organismo que há energia em abundância, portanto o corpo começa a estocar essa energia excedente na forma de gordura. Esse acúmulo de lipídios na corrente sanguínea aumenta os riscos de doenças cardiovasculares ao longo do tempo.
Os carboidratos de cadeia longa, como o amido, contém o mesmo valor calórico, afinal são convertidos em glicose e absorvidos pelo organismo.
Já as fibras, por não serem digeridas por nós humanos, não trazem este tipo de risco.
Vale ressaltar que as fibras alimentares também são carboidratos, mas por não serem digeríveis, são consideradas a parte na tabela nutricional.
O papel do açúcar na indústria.
Agora que já relembramos um pouco da bioquímica de alimentos, vamos entender também o motivo de se usar tanto açúcar na indústria.
A primeira função dos açúcares nos alimentos é dar sabor agradável, certo? Sim, mas tem um porquê. A função primária de um alimento é fornecer energia e nutrientes essenciais. E com os açúcares não é diferente.
Acontece que os alimentos mais energéticos são também os mais gostosos (Irônico). Já experimentou comer grama ou papel? É horrível!! E por “coincidência”, também não nos fornece energia.
A questão sensorial é muito importante. Nos impede, por exemplo, de comer coisas estragadas, que vão nos fazem mal.
Esses mecanismos para a escolha do que comer já existiam muito antes das indústrias. Os alimentos precisam ser agradáveis ao paladar, do contrário não serão consumidos.
E o que faz a indústria se não atender ao consumidor? Os açúcares foram sendo cada vez mais incorporados nos alimentos, a fim de aumentar sua aceitação do público. Lembre-se, para o cérebro, mais doce = mais energia.
Então, no fim das contas, a indústria atende a demanda energética da população.
O “problema” do padrão estabelecido.
Se ser doce é o ponto-chave, basta substituir por adoçante, não é mesmo? Seria bom se fosse tão simples assim.
Embora associemos os açúcares apenas ao dulçor, ele influencia em toda a questão sensorial: Textura, aroma, aspecto, cor, etc. Ao longo de séculos padrões foram estabelecidos para os diversos tipos de alimento.
Quando vamos a padaria e pedimos um pão, sabemos exatamente o que queremos. O padrão importa. E esse é o grande desafio da substituição do açúcar. Seu consumidor já está acostumado com seu produto. Não apenas com o sabor, mas com todas as características.
Os açúcares desempenham papel importante na textura de um produto. Em doce de leite, chocolate e sorvetes seu papel é tecnológico. Basicamente, não dá pra fazer um produto igual sem açúcar. Ficam até parecidos, mas ainda assim são imitações.
Podemos pegar o exemplo dos refrigerantes, um líquido. Mesmo ali o açúcar faz muita diferença. A Coca-Cola afirma que sua versão sem açúcar é igual à versão original, e são bem próximas mesmo. Porém a preferência do consumidor recorrente ainda é pela original.
Talvez para um novato, não faça diferença, mas para quem consome a marca a anos, o padrão já foi estabelecido. O padrão engloba tudo!
Seu cliente quer o mesmo produto!
A quantidade de açúcar retirada pode ser convertida em edulcorantes ou aromas. E para fazer esta conversão, não tem receita pronta.
Existem uma infinidade de edulcorantes, naturais e artificiais, cada um com vantagens e desvantagens. Alguns por exemplo, deixam sabor residual. Geralmente é feito uma mistura para obter um sabor equilibrado.
Agora precisamos olhar para o processo. Existe algum tratamento térmico? Então pode ser necessária a aplicação de algum corante (Para manter os efeitos das reações de escurecimento, como caramelização e Maillard).
Houve aumento da atividade de água pela remoção do açúcar? Talvez seja preciso utilizar algum conservante para manter a qualidade microbiológica.
E por fim, chegamos à consistência. A textura de um alimento influencia diretamente na percepção do sabor. Os açúcares afetam a viscosidade geral do alimento pela sua dispersão e concentração dentro da solução.
Para recompor o corpo do produto, podemos utilizar gomas, amido e similares. Esses compostos elevam a viscosidade, mas diferente do açúcar, tem tendência de formar gel.
Isso pode estragar a experiência de consumo. Seria a diferença entre um pudim e um flan (ambos são gostosos, mas se você compra pudim, quer comer pudim).
Uma boa alternativa são os poliois, um tipo de carboidrato menos doce e calórico mas com propriedades semelhantes. O grande ponto negativo é o custo.
O custo também importa!
Não podemos cair nessa de fazer o produto mais saudável do mundo se seu consumidor habitual não poderá comprá-lo. Cada empresa tem seu nicho de mercado e seu cliente-alvo.
Se a proposta é fazer um produto igual, para a mesma base consumidora, não faz sentido deixar o preço de lado.
É bastante trabalho. E no final disso tudo, seu consumidor ainda pode olhar sua lista de ingredientes e achar ruim pela quantidade de ingredientes com nomes esquisitos e INS. Acontece.
E se alguém pode resolver essa equação, somos nós. Com todo nosso conhecimento mas também ouvindo o nosso consumidor. Entendê-lo e crucial para não errar.
Em alguns produtos, manter a “lupa” será o caminho. E não há nada de errado com isso, desde que seja feito com diálogo.
E você, quais os desafios você enxerga nos produtos com os quais trabalha?