Zero Lactose: O desafio do leite em pó Zero lactose.

Os produtos Zero lactose invadiram as prateleiras dos mercados nesta última década. Assim como qualquer novidade, essa também veio acompanhada de uma enxurrada de informações, algumas delas desencontradas. Nesta série de artigos nós vamos colocar os pingos nos “is” e tirar as principais dúvidas em relação aos produtos Zero Lactose.

Este é o sexto artigo da série e nele vou abordar os desafios para a produção de leite em pó Zero lactose, assim como outros derivados em pó.

Boa leitura!

Zero Lactose: Leite em pó Zero lactose
Representação gráfica para leite em pó Zero lactose.

Uma questão de tecnologia.

Nos artigos anteriores, abordamos a maioria dos grupos de derivados lácteos. Cada um deles com suas particularidades tecnológicas.

Os processos de fabricação de cada derivado tem suas especificidades, levando em conta as características desejadas no produto final.

Em outras palavras, para obter leite fresco e seguro para o consumo, usamos a pasteurização. Para dar mais validade a esse leite, usamos um tratamento UHT. E se desejamos um produto concentrado, submetemos o leite à evaporação.

Essas tecnologias modificam as propriedades do leite, e também mudam a etapa de realização da hidrólise. Mas no geral é possível obter um produto Zero lactose bem semelhante à sua versão normal.

Uma ou outra alteração de fórmula ou procedimento pode ser necessária, mas ainda assim conseguimos obter o produto hidrolisado.

Nos produtos desidratados a coisas ficam um pouco mais complicadas.

Afinal, como se faz leite em pó.

Seria bem mais fácil se fosse como naquela piada:

-“Congela o leite e rala”

Porém, é quase o oposto disso. A desidratação de lácteos é baseada em transferência de energia, que permite a evaporação da água.

O principio é semelhante ao que ocorre com os concentrados, só que neste caso a evaporação não ocorre por meio da ebulição.

Por outro lado, nos desidratados a vaporização da água para obtenção do pó depende de um equipamento chamado Spray Dryer. O “Spray” é devido à forma com que o leite entra no processo, em pequenas gotículas, como uma névoa. “Dryer” é relacionado à secagem mesmo.

Esta secagem é realizada com ar quente (Em média 180 °C). Neste processo ocorre a evaporação praticamente instantânea da água presente na gota, restando apenas o grão com os sólidos do leite.

É importante salientar que o pó não chega aos 180°C, justamente por ser um processo muito rápido. Em condições normais o pó atinge no máximo 50°C durante a secagem.

E isso garante que o produto obtido tenha o mínimo de alterações térmicas possível. O objetivo da secagem é obter um pó que possa ser reconstituído com facilidade. E que quando reidratado, as características originais se mantenham.

A lactose no leite em pó.

A lactose é o maior constituinte do leite depois da água. E aqui estamos falando da remoção dessa água praticamente por completo. Ou seja, o maior componente do leite em pó é a lactose. E isso influencia totalmente nas propriedades do pó.

A lactose no leite encontra-se solúvel e a medida que vamos removendo a água do leite, ela tende a sair da solução para cristalizar. Chegamos a mencionar isso no artigo sobre os concentrados hidrolisados.

Podemos pensar que nos pós, por se tratar de um produto com ainda menos umidade, também ocorra a cristalização da lactose. Isso é uma verdade.

A lactose presente no leite quer mesmo se cristalizar, mas a remoção de água durante a secagem é tão rápida que não dá tempo desta cristalização ocorrer. A viscosidade no pó é tão alta que não há mobilidade suficiente para que a lactose se torne um cristal.

A molécula não está mais solúvel, mas também não está na forma ordenada de um cristal. É o que chamamos de sólido amorfo.

Este estado irá se manter até que a lactose tenha mobilidade suficiente para ir para o estado ordenado.

Podemos dar essa mobilidade aumentando a umidade do pó. É por isso que se deixar um leite em pó exposto ao ambiente, ele absorve umidade e empedra com o tempo. A outra forma de aumentar a mobilidade é aumentando a temperatura.

A temperatura de transição vítrea.

Existe uma temperatura mínima para que as modificações no pó ocorram. Ela, inclusive, depende da composição deste pó. Esta é a temperatura de transição vítrea (TTg).

Todos os constituintes do leite têm uma temperatura de transição vítrea e contribuem para a propriedade do pó como um todo. No leite em pó integral a TTg fica acima dos 60°C.

É uma temperatura que não é alcançada nem mesmo durante a secagem (Lembre-se que a partícula do pó chega a no máximo 50°C).

Isso é o que possibilita obter leite em pó estável. Isso, é claro, desde que armazenado em condições adequadas. O aumento da umidade faz com que a TTg caia, e torna mais fácil iniciar a transição vítrea.

Mas afinal, qual o problema da transição vítrea?

Após passar da TTg, o pó se torna bastante instável e aumenta consideravelmente sua higroscopicidade (capacidade de absorver água). E essa mobilidade adquirida pelas moléculas resulta em um aspecto pegajoso no pó.

É um pó muito difícil de manipular justamente porque ele adquire a característica de uma goma, se tornando grudento. O pó se manterá neste estado até que a cristalização ocorra, mas o resultado continua sendo um defeito no pó, que passará de gomoso para empedrado.

Este porém, não é um defeito comum em leite em pó, seja integral ou desnatado. Estes produtos tem grandes quantidades de outros sólidos, principalmente proteínas, que atuam para aumentar a TTg, dificultando a transição.

Não podemos falar o mesmo para o soro em pó. Por conter basicamente lactose em sua composição, sua TTg é bem mais baixa. Tão baixa que a transição vítrea começa a ocorrer dentro da própria câmara de secagem.

O resultado é certeiro: Operador entrando de picareta dentro da câmara para desobstruir os dutos.

Zero Lactose: Leite em pó Zero lactose
“Oh God, why?!”

É só remover a lactose!

Nosso artigo é sobre zero lactose. O problema da transição vítrea esta relacionado a lactose. Eureka! É só hidrolisar a lactose!

Não tão rápido, jovem.

Falando sobre a hidrólise em si, o ideal seria aplicar a enzima antes da secagem, à frio mesmo (20 a 30 horas em temperaturas menores de 10°C). E neste ponto, não existe segredo. A hidrólise pode ser feita após a pasteurização, logo antes da secagem.

O desafio aqui é outro.

Quebrar a lactose só agrava o problema. Via de regra, as moléculas de cadeia longa têm TTg maior, enquanto moléculas de cadeia curta tem efeito contrário no pó. Por isso é mais difícil secar soro do que leite, pois ele tem mais lactose (cadeia curta) e menos proteínas (cadeia longa).

Transformar a lactose em glicose e galactose acaba por derrubar a TTg, pois são moléculas ainda menores que a lactose. O resultado é um pó muito pegajoso que adere nas paredes do secador e empedra com muita facilidade.

Para secar esse pó são necessárias alterações de processo bem importantes, como diminuir a temperatura de trabalho para evitar ultrapassar da TTg dentro da câmara. Com isso, a produtividade também cai. E ainda assim não é garantido o sucesso da operação. Não atoa temos poucas marcas com pós Zero lactose.

É impossível fazer pós Zero lactose?

Não é impossível. Mas requer de nós uma capacidade inventiva.

Com as tecnologias atuais é muito difícil obter um pó Zero lactose usando apenas a hidrólise. A quebra sempre atuará na diminuição da TTg e impactará no pó.

Por exemplo, no soro (Comum, com lactose), a solução é mais simples. Basta promover a cristalização da lactose antes de secar. Isto faz com que a TTg do pó aumente muito, evitando os problemas citados.

Mas secar soro hidrolisado, nem pensar. A glicose e a galactose, ao contrário da lactose, não cristalizam. Nesse caso, é melhor aumentar o estoque de picaretas.

As soluções para os hidrolisados não são tão simples. Mesmo nos casos em que a secagem conseguir temperaturas muito baixas no pó, ele ainda estará susceptível à temperatura ambiente e qualquer ganho de umidade vai iniciar a transição vítrea.

Ou seja, pode ser que não dê problemas no processo, mas não garantimos que chegue integro até a gondola do supermercado.

Temos duas saídas:

Remover a lactose.

Não é quebrar, é remover! Podemos fazer isso usando membranas, por exemplo. Mas tecnicamente falando, esse produto não será mais leite em pó.

Os carboidratos fazem parte da composição do leite. Alterar sua composição é criar outro produto.

Pode até ser bom e aplicável, mas não é leite em pó. Podemos também combinar uma remoção parcial com a hidrólise do restante da lactose. Acredito que sejam boas linhas de desenvolvimento.

Adicionar compostos que aumentam a TTg

A segunda opção é adicionar proteínas, maltodextrinas e outras moléculas que possam anular o efeito da hidrólise. Mas o produto obtido também não será leite em pó, e sim composto lácteo. Ainda assim, é uma opção mais viável de produto.

Do ponto de vista sensorial, os pós hidrolisados serão mais doces e com maior tendência ao escurecimento. E avaliando as opções acima, é mais fácil alcançar um padrão de sabor semelhante ao leite em pó comum com o composto lácteo do que apenas removendo a lactose.

Imagine só um leite sem o sabor levemente adocidado caracteristico? É um concentrado proteico (MPC) com gordura.

E assim chegamos ao fim de mais um artigo.

Praticamente finalizamos os derivados Zero lactose, mas ainda faltam alguns produtos. Aqueles que não são lácteos, mas usam lácteos em suas receitas.

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Paulo Henrique Rodrigues Júnior
Paulo Henrique Rodrigues Júnior

Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos pela Universidade Federal de Viçosa. Atuo no setor de P&D e Processos na indústria desde 2015.
E desde então vivo um caso de amor pelos Processos Industriais. E quando sobra um tempinho, faço uns desenhos.

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